Recebi um e-mail da Senadora Gleisi
Hoffmann, me dando conhecimento de um rico artigo do Prof.
Gustavo Felipe Barbosa Garcia, que além de ser Livre-Docente da Universidade de
São Paulo (USP) foi Procurador do Trabalho do Ministério Público da União e
Auditor-Fiscal do Trabalho.
Em face do rico e abreviado artigo, que em poucas palavras esmiunça a realidade da reforma da previdência proposta pelo Presidente Michel Temer.
VEJA O ARTIGO
PROPOSTA DE REFORMA PREVIDENCIÁRIA:
RETROCESSO E INJUSTIÇA SOCIAL
A reforma previdenciária recentemente
apresentada ao Congresso Nacional sob a forma de Proposta de Emenda à
Constituição (nº 287/2016) é uma das mais impressionantes afrontas aos direitos
sociais vistas na história do mundo civilizado.
A exigência de idade mínima de 65 anos
para a aposentadoria, já bastante elevada, irá aumentar conforme o passar do
tempo, exigindo-se, também, 25 anos de tempo de contribuição.
O aumento da expectativa de sobrevida,
algo que seria digno de comemoração, passará a penalizar as pessoas que
pretendam se aposentar.
Ainda assim, para se receber integralmente
a média das remunerações, sempre respeitado o valor máximo do INSS, será
exigido o surpreendente período de 49 anos de tempo de contribuição.
Cabe lembrar que todo esse rigor passará a
ser aplicado aos homens e mulheres, assim como aos trabalhadores rurais, embora
normalmente expostos a condições mais penosas de labor.
Na prática, quase ninguém irá conseguir se
aposentar, nem se manter empregado ou trabalhando por tanto tempo.
Logo, fica sem resposta uma pergunta
básica, qual seja: como as pessoas irão sobreviver após certa idade, quando não
conseguirem mais ser absorvidas pelo mercado de trabalho, nem ter ocupação
profissional?
Não custa lembrar que os segurados do
Regime Geral de Previdência Social normalmente são trabalhadores que não têm
estabilidade no emprego, podendo ser dispensados quando menos esperam, ou ficar
sem trabalho e renda de um dia para o outro. Com isso, quem alcançar idade mais
avançada passará a receber o inusitado castigo da exclusão social.
Como parece óbvio, não podemos
simplesmente propor a reformulação do sistema previdenciário com base em
exemplos que não correspondem à realidade social brasileira.
Ao se deixar as pessoas sem meios de
sobrevivência, afronta-se de forma manifesta o principal fundamento do Estado
Democrático de Direito, que é a dignidade da pessoa humana (art. 1º,
inciso III, da Constituição da República).
Tornando-se praticamente inacessível a
aposentadoria oficial, aqueles que têm melhores condições econômicas, ao que
tudo indica, passarão a buscar vias alternativas, como investimentos
financeiros de médio e longo prazo e previdência privada. Isso, evidentemente,
favorecerá as instituições financeiras e as entidades de previdência complementar,
normalmente abertas, constituídas sob a forma de sociedades anônimas.
Entretanto, como ficarão os que não têm nada para poupar e que compõem a grande
maioria da população?
Observe-se, ademais, que mesmo a
previdência social se tornando uma promessa muitas vezes inalcançável,
prossegue-se impondo ao segurado o dever de contribuição.
É certo que a Seguridade Social está
fundada na solidariedade[1], mas qual a justiça e a razoabilidade de se contribuir
obrigatoriamente para o custeio de direitos que, em regra, não serão mais
acessíveis, permanecendo-se, em termos práticos, sem proteção previdenciária?
Ainda de acordo com a proposta de reforma
previdenciária, a pensão por morte passará a ser devida no valor da cota
familiar de 50%, acrescida de cotas individuais de 10% por dependente, até o
limite de 100% da aposentadoria que o segurado recebia ou daquela que teria direito
se fosse aposentado por incapacidade permanente na data do óbito.
A redução no valor da pensão por morte é
injustificável, pois esse benefício tem natureza previdenciária e substitui a
renda do segurado falecido, sendo devido aos seus dependentes. O segurado
contribui mensalmente sobre o valor integral do seu salário de contribuição
(observado o limite máximo do INSS), justamente com o objetivo de que os
dependentes possam receber o benefício em questão caso ele venha a falecer. A
contribuição previdenciária do segurado não incide apenas sobre uma parte do
salário de contribuição (ou seja, da sua remuneração), tornando injusto que os
dependentes recebam somente um percentual do valor da aposentadoria, em
contrariedade à lógica de justiça inerente ao seguro social.
Retrocedendo ainda mais, a proposta de
reforma previdenciária, surpreendentemente, passa a prever que no caso da
pensão por morte não será mais aplicável a garantia constitucional de que
nenhum benefício que substitui o rendimento do trabalho do segurado pode ter
valor inferior ao salário mínimo (§ 2º do art. 201 da Constituição Federal de
1988).
Isso significa passar a permitir que, em
certos casos, os dependentes do segurado falecido tenham de sobreviver com
valores inferiores ao salário mínimo, o qual, por exigência constitucional, é o
menor valor admissível para o atendimento das necessidades vitais básicas do
ser humano e de sua família (art. 7º, inciso IV, da Constituição da República).
Além disso, passa a não ser mais admitida
a cumulação de aposentadoria com pensão por morte, o que configura manifesta
injustiça e afronta até mesmo ao caráter contributivo da Previdência Social.
Enquanto a aposentadoria é devida ao segurado, diversamente, a pensão por morte
é direcionada aos dependentes do segurado.
Desse modo, se alguém, como segurado,
recebe a sua própria aposentadoria, por ter assim contribuído, mas também é
dependente de outro segurado que faleceu e contribuía para a Previdência
Social, nada mais legítimo do que permitir o recebimento de ambos os benefícios
(quais sejam, a aposentadoria na condição de segurado e a pensão por morte por
ser dependente de outro segurado falecido), quando preenchidos os respectivos
requisitos, pois as contribuições e os fatos geradores são nitidamente diversos.
A proposta apresentada também alcança a
Assistência Social, notadamente quanto ao benefício de prestação
continuada, o qual, por ter natureza assistencial, não exige contribuição do
beneficiário para o seu recebimento, tendo como objetivo assegurar um valor
mínimo que permita a subsistência digna de pessoas idosas e com deficiência sem
condições de se manter por si ou por seus familiares.
Quanto ao tema, a PEC 287/2016 deixa de
prever que o benefício de prestação continuada será devido no valor de um salário
mínimo (art. 203, inciso V, da Constituição), contrariando a própria finalidade
de garantir um patamar básico que assegure a dignidade humana a pessoas em
estado de maior vulnerabilidade econômica e de exclusão social.
Trata-se de retrocesso inadmissível no
Estado Democrático de Direito, o qual tem como objetivos fundamentais construir
uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza, a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais, bem como promover o bem de todos.
A proposta de elevação da idade de 65 para
70 anos para o recebimento do mencionado benefício de prestação continuada
contraria, ainda, o próprio conceito de idoso, por ser assim considerada a
pessoa com idade de 60 anos ou mais (art. 1º da Lei 10.741/2003, que instituiu
o Estatuto do Idoso), prejudicando as pessoas de idade avançada e sem meios de
prover por si ou por seus familiares a subsistência.
O poder soberano do Estado, para ser
legítimo, impõe o seu exercício em consonância com a promoção do bem comum,
previsto como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil (art. 3º,
inciso IV, da Constituição de 1988), e não segundo interesses de apenas alguns.
Como todo o poder emana do povo (art. 1º,
parágrafo único, da Constituição da República), espera-se, assim, que este não
aceite passivamente tão profundo e grave retrocesso social.
[1] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de
direito da seguridade social. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 65-68.
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